quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Sentimento Insular [Abordagem criativa de "Sentimento dum Ocidental" de Cesário Verde]

Numa rua escura, me perco. Numa rua clara, me encontro. Numa ponte grande, me deixo. Numa noite negra, me escondo. Uma moça branca me estende as mãos. Uma moça preta me oferece o pão. A pensar me pego, olhando às ruas. A sonhar espero evitar as rugas. Sinto-me em profundo isolamento. Sinto-me em gigante envolvimento. Ando pelas praças perscrutando seres que me pareçam iguais. Vejo na paisagem viva uns e outros normais. Normais me parecem à distância, com sua simplicidade e insignificância. Porém, ao formarem o todo; a massa; o povo – vejam só que maravilha! Eis que surge algo novo! Pois já não são mais simples indivíduos o que vejo abismado. São pedaços de um engenho que de perto não se vê formado. Uma ilha à toa, perdida no mar! Onde se acha de fato beleza sem par. Mas de fato a beleza que desejo olhar, não se trata daquela que circunda o mar. É na calçada que demoro meus olhos. Na calçada onde passa o mendigo. Onde dorme o mendigo. Onde come o mendigo. Na calçada fico em transe, dou vez à permutabilidade. Deixo-me macular pela miséria, deixo-me infectar pela sujeira. Para que sinta ao menos uma vez que não sou ilha. Que sou continental. Ocidental. A verdade é que não sei ao certo onde vou parar. Sei que ilha voltarei a me tornar. E nesse ínterim tento sugar alguma essência, e dessa experiência retorno embriagado. E antes que a lucidez se aposse outra vez de minhas carnes e de meu gênio, aproveito para sentir-me imergido nessa massa, nesse povo, nessa ordem. A ordem das coisas que são quando não são sozinhas. A ordem que surge da desordem. É ela quem regula as criaturas provenientes dessa região: a calçada. É esse movimento de conjunto que me faz sentir vontade de participar da vida e ao mesmo tempo me encontrar à margem. Insularizado. Eu não rezo. Não participo de religiões. Entretanto, não desprezo àqueles que vão aos sermões. Vejo nisso uma virtude, uma coisa a se invejar. Deus me guarde, Deus me ajude, pois só sei Nele não acreditar.

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