segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Avatar de Titanic

Titanic, do diretor americano James Cameron, é atravessado por uma monumental contradição. Por um lado, a par da história de amor que o anima, o filme, reproduzindo a moral desde sempre associada aos relatos a respeito do naufrágio do famoso transatlântico, denuncia a moderna crença na onipotência da técnica. Por outro lado, recorrendo despudoradamente aos chamados efeitos especiais, Titanic é precisamente um delírio tecnológico, um elogio maníaco à capacidade humana de dominar a natureza. Sintomaticamente, o título da obra é, sem mais, o nome do navio. Freud explica: o que inicialmente se apresenta como reflexão sobre o passado é, no essencial, sua repetição.
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Avatar, a mais nova produção de Cameron, retorna aos temas centrais de Titanic: uma vez mais, ao menos no campo das intenções declaradas, trata-se de propor uma discussão acerca do limites da ambição humana e da necessidade de harmonizá-la com a natureza, suas leis e seus caprichos. Tal projeto, de novo, é ameaçado pela paixão de Cameron pela tecnologia, a começar pelo fato de que, como em Titanic, a comoção que o roteiro é capaz de provocar está, na melhor das hipóteses, a um milímetro de ser neutralizada pelo apelo fascinante das imagens criadas por computador.
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A própria trama de Avatar revela, de resto, o quão problemática e vacilante é a ecologia de Cameron. É verdade que, no filme, os Na’vi – seres extraterrestres profundamente identificados com a natureza – triunfarão sobre os humanos, a despeito da radical desvantagem tecnológica que os oprime. De fato, na undécima hora, quando tudo parece perdido, a sintonia dos ETs com a fauna local deflagra uma autêntica revolução dos bichos, e a derrota iminente transforma-se em vitória acachapante. Contudo, basta um minuto de reflexão para que se ponha em xeque essa aparente supremacia das forças telúricas sobre o impulso de subjugá-las.
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“Vistas de perto”, diz um certo personangem de Sartre, “as vitórias se parecem demais com as derrotas”. Ora, a máxima cai como uma luva para caracterizar o resutado da batalha concebida por Cameron. É que o líder do triunfo dos Na’vi é um avatar, isto é, um homem tecnologicamente transformado em Na’vi (com fins científicos e, secretamente, militares). O recado, salvo engano, é claro: a natureza, doravante, é, em última instância, uma concessionária da tecnologia. O fato de, no fim do filme, o avatar escolher converter-se definitivamente em Na’vi não muda nada. Sim, os Na’vi tem uma relação especial com os animais e as plantas – mas, a partir de agora, estão indissolúvel e visceralmente ligados aos humanos e, em particular, à história das tecnologias. O melhor que podem fazer é reconhecer essa ligação e fazer dela um objeto do que Freud chama de elaboração. A decisão dos Na’vi vai, contudo, em outra direção: trata-se, para eles, de recalcar o vínculo com a humanidade (lembre-se de uma das cenas finais do filme, em que os humanos que sobreviveram à luta são expulsos sob o olhar altivo e confiante dos Na’vi). Ato contínuo, se a psicanálise tem razão, resta aos ETs esperar pelo retorno do recalcado. Suas vidas – podemos adivinhar, embora o filme, não por acaso, tudo nos sonegue a esse respeito – nunca mais serão as mesmas. A técnica humana, doravante, é o diabo, isto é, o deus secreto que, das profundezas do planeta que habitam, governará seus destinos. Os Na’vi venceram a batalha, mas perderam a guerra.
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Avatar parece um elogio da natureza, mas, de ponta a ponta, no enunciado e na enunciação, é, na verdade, um canto de vitória da técnica humana. Em um nível superficial, a moral do filme recomenda a integração urgente com a natureza. Não obstante, sob essa casca ecológica, ouve-se uma outra mensagem – esta: “Os Na’vi podem ser umas gracinhas, mas não chegam aos pés dos humanos. Do jeito que vivem, apesar de as aparências sugerirem o contrário, não podem se cuidar sozinhos e, principalmente, jamais serão capazes de produzir objetos tão fascinantes como Avatar.” E a verdadeira moral do filme continua: “Por nada deste ou de outros mundos, abriremos mão desse fascínio, nem mesmo se o preço pelos prodígios da técnica for, como é o caso, a possibilidade sempre presente de transformar nossas maravilhosas geringonças em absurdas máquinas de destruição.” Realmente, é preciso abrir os olhos para Avatar, essa ode disfarçada à pulsão de morte.

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