segunda-feira, 5 de abril de 2010

O terceiro elemento

Alguém – não se sabe quem, nem em nome de que motivos – teria entrado no apartamento 62 do Edifício London e, ato contínuo, agredido e defenestrado a menina Isabella: isso é tudo o que Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá tem a dizer em resposta ao estupendo conjunto de evidências que pesam sobre eles. Como peça jurídica, a tese da terceira pessoa é, de fato, puro lixo. Não obstante, talvez seja o caso de, na esteira da psicanálise, remexer um pouco esse lixo. Freud, afinal, ensina que a verdade do sujeito emerge precisamente lá onde ele se põe a dizer bobagens (é esse o sentido maior do que o mestre vienense chama de livre associação: “Diga qualquer coisa, de preferência o que primeiro lhe ocorrer, não importa o quão tolo ou frívolo isso lhe pareça”.)
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Um suposto assassino sem identidade nem razões minimamente delimitadas: bizarro retrato falado. Salvo engano, qualquer habitante do planeta – menos Alexandre e Anna Carolina, é claro... – enquadra-se na descrição por eles proposta. Parece piada: a propósito de livrar a própria cara, os Nardoni pedem nada menos do que o indiciamento da humanidade.
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Parece piada, mas não é. A rigor, essa solicitação de indiciamento da humanidade tem algo de apavorante: ao enunciá-la, Alexandre e Anna Carolina separam-se e distinguem-se, não deste ou daquele grupo, mas dos homens e mulheres em geral. Ao continuar a ser repetida (a despeito de sua irremediável inconsistência), a tese da terceira pessoa revela-se cada vez mais como expressão de um racismo hiperbólico, dirigido não aos negros, aos judeus ou – que sei eu? – aos homossexuais, mas à humanidade como um todo.
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Como puderam os Nardoni matar aquela que deveriam proteger? A seqüência dos acontecimentos o esclarece: um ato tão absurdo é possível porque advém do lugar de um narcisismo e de um egoísmo tamanhos que, em seguida, como se fosse a coisa mais trivial a ser feita, afirma-se contra todas as almas deste mundo. Eu e o leitor que tratemos de conseguir um álibi capaz de provar nossa inocência.
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Isto posto, é preciso dizer que reduzir os Nardoni a duas figuras monstruosas, inumanas, não é a finalidade deste artigo. Proceder assim seria simplesmente inverter o gesto do casal de elevar-se acima do comum dos mortais. Que eu seja entendido: os Nardoni fizeram algo escabroso e devem pagar muito caro por isso. Mas segregá-los em uma prisão não pode ser o mesmo que realizar pelo avesso o seu desejo distinguir-se da humanidade. Se há uma punição realmente eficaz para Alexandre e Anna Carolina, ela consiste em interditar-lhes a tentativa de permanecer entre as quatro paredes de seu narcisismo. É urgente insistir em dizer-lhes: “A despeito do alto juízo que vocês fazem de si mesmos e apesar do crime que cometeram e da execração a que isso necessariamente corresponde, vocês são humanos e não podem não sê-lo”. Creio que não há castigo maior para eles. O fato, contudo, é que, em contrapartida, há um preço que todos devemos pagar a fim de, nesse caso, poder fazer justiça, imputando aos Nardoni a pena que realmente merecem: impedir-lhes o desejo de distinguir-se do comum dos mortais implica, por outro lado, reconhecer que, por pouco que seja, há um que de Nardoni e Anna Carolina em nós. O exercício é doloroso, mas precisamos buscar, não apenas o que singulariza o casal, mas também o que, nessa dupla diabólica, é marca de humanidade e sinal de pertencimento a este nosso mundo.
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Jurandir Freire Costa pode ser nosso guia nessa tarefa. Para ele, está claro que o caracteriza a vida contemporânea é o enfraquecimento da lei como instância capaz de mediar as relações entre os sujeitos (aqui, entende-se lei em seu sentido formal, mas também em sentido amplo, como código moral ou tradição a ser seguida). Contardo Calligaris completa a tese de Freire Costa: a civilização depende e continua a depender da internalização da autoridade (é o que nos impede de nos matarmos uns aos outros sem que a presença de um policial seja necessária); mas, em sua forma moderna, essa internalização da autoridade ocorre ao preço do recalque de sua origem exterior. Trocando em miúdos, não é que o sujeito recuse a lei em si ou pelo menos a totalidade delas; o que ele faz é submeter essas herança recebida a uma espécie de tribunal interno que decide o que lhe serve e o que não lhe serve. Em suma, ele filtra e privatiza um legado social.
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A face positiva desse processo é a promoção do indivíduo e da possibilidade de cada um de nós experimentar um destino profundamente singular. Isso está vedado a sociedades em que a lei, não importa quão dura e restritiva ela seja, é tomada pelo sujeito como um valor que está acima de seus desejos individuais.
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Mas é necessário acrescentar que o individualismo moderno tem uma contraparte negativa, arriscada, perigosa: deixar a cada um a decisão sobre o que é justo ou injusto é habitar um mundo em que é rigorosamente impossível saber até onde o nosso semelhante pode agir com a consciência tranqüila.
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Esse estado de coisas produz o que Jurandir Freire Costa chama de cultura da violência: na medida em que não sabemos até onde o outro pode agir sem culpa, isto é, na medida em que o outro – qualquer outro – é um agressor em potencial, resta-nos antecipar-nos a seu ataque: somos desde logo agressivos com ele.
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Cultura da violência, cultura do narcisismo: a agressividade preventiva como forma de relacionar-se com o outro inviabiliza o diálogo, imergindo o sujeito em um mundo radicalmente privado, no qual pensar – o que, na brilhante fórmula de Hannah Arendt, é sempre colocar-se no lugar do outro – torna-se cada vez mais uma impossibilidade. O limiar desse processo é Alexandre Nardoni, encarnação do que a própria Hannah Arendt chama de banalidade do mal, quer dizer, do mal que provém, não das profundezas da patologia, mas da superficialidade de quem é simplesmente incapaz de tentar ver o mundo pelos olhos do outro (ainda que esse outro seja, no limite, a própria filha).
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Margareth Thatcher, ex-primeira ministra inglesa, disse certa vez que “não existe essa coisa chamada sociedade; o que existe é o indivíduo”. Esse não é um pensamento isolado. É uma insígnia de nosso tempo. A maioria de nós está disposta a ir bem longe nessa defesa da própria liberdade e da própria singularidade, sobretudo quando se trata de preservar os nossos direitos de cidadão (e, principalmente, de consumidor) ou de contrariar os limites e taxações que o Estado, por razões legítimas ou ilegítimas, impõe sobre nós. Essa luta em nome do desejo individual freqüentemente parece muito bonita e de fato o é em inumeráveis casos. Mas há que se dizer que é contínua a linha que liga esse bom combate a um narcisismo imbecilizado e aberto aos atos mais aberrantes. A violência e a morte rondam o individualismo moderno. Ser indivíduo, insisto, é estar sempre a esgarçar o lugar da lei, isto é, do terceiro que medeia e organiza as minhas relações com meus semelhantes.
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Do que eu disse resta concluir que tudo o que faltou na cena do crime de Isabella é um terceiro elemento, quer dizer, uma instância mediadora que se interpusesse entre os Nardoni e Isabella e fizesse aquele homem e aquela mulher enxergar que há coisas que simplesmente não se pode fazer ao outro. Os Nardoni – figuras exasperadas do individualismo moderno – passaram a vida a exorcizar esse terceiro por cuja presença eles agora clamam.
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Pois bem: o terceiro, enfim, chegou. Veio tarde demais para salvar Isabella, mas alcançou os Nardoni a tempo. Não veio sob a forma que o narcisismo deles queria, quer dizer, na pessoa de alguém que assumisse, no lugar de Alexandre e Anna Carolina, o crime que cometeram. Veio, isso sim, na carne de um juiz que os declarou culpados e condenou aqueles que exerceram o narcisismo até o limite a viver como prisioneiros, grau zero da individualidade moderna. Que isso sirva de lição. A eles. A nós.

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