quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Geisy e o vazio

Uma blondie metida em trajes sumários: existe imagem mais desgastada do que essa? Como Deus em outros tempos, ela está em todos os lugares, inclusive nas igrejas, que dirá em universidades de quinta categoria. Reencontrá-la, por isso, deveria provocar tédio ou, antes, aquela olímpica indiferença que, segundo Nelson Rodrigues, o crioulo do Grapete distribuía ao desfile incessante de corpos seminus nas praias cariocas. Daí a surpresa geral diante do agora célebre episódio da Uniban. O que, afinal, motivou a insuspeitada reação dos colegas de Geisy Arruda? Por que hostilizaram aquela que deveria ser vista como a mais banal das aparições?
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Até onde pude acompanhar a repercussão do caso, duas vertentes de explicação prevaleceram. A primeira, capitaneada por especialistas convocados pelos grandes veículos de informação, atribui o ocorrido a personalidades psicopatas e criminogênicas cuja perversidade, em um processo que caberia à psicologia das massas descrever, teria contagiado indivíduos normais e acima de qualquer suspeita. Já a segunda vertente de explicações toma a reação dos alunos da Uniban como sinal de que, entre os jovens, uma virada conservadora se anuncia.

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Nada disso, contudo, me parece convincente. Não digo que essas suposições não tenham lá sua lógica. O raciocínio que as anima faz sentido: se a reação dos alunos foi muito maior do que a esperada, é porque algo igualmente grandioso está por trás dessa reação. De minha parte, prefiro, entretanto, seguir a trilha inversa, tomando o excesso, não como efeito de uma causa igualmente espetacular, mas, antes, como fruto de uma espécie de anti-causa: uma falta, um vazio. Assim, em vez de, por exemplo, considerar que uma inflexão à direita está em curso, eu tenderia a dizer que o referencial da moralidade está irremediavelmente perdido, e o que exaspera os alunos da Uniban é precisamente a impossibilidade de sentir uma repulsa genuína pela figura de Geisy. Trocando em miúdos, a reação daqueles rapazes e moças é, na verdade, uma tentativa inútil e desesperada – por isso, necessariamente excessiva – de recompor um código de conduta e, mais que isso, de experimentar os sentimentos que a adesão orgânica a esse código é capaz de gerar.

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Suspeito, aliás, que essa nostalgia da moralidade perdida explique a própria proposição da hipótese de que uma virada conservadora esteja acontecendo. Não importa que quem a enuncie tome-a como um dado a ser comemorado ou lamentado: os dois lados sonham em voltar a experimentar algo que já não é mais possível experimentar, a saber, a força de um sentimento autêntico de repugnância moral ou, no caso dos revolucionários, um sentimento autêntico de repugnância à repugnância moral (observemos, de resto, que a grandiloqüência da hipótese da virada à direita assim como a paixão com que “conservadores” e “progressistas” discutem o caso Geisy carregam algo da exasperação dos alunos da Uniban).

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O que eu disse em relação à moralidade deve ser estendido a todos os códigos de conduta que definem o campo do que se costuma chamar de normalidade. Talvez seja por isso – isto é, por uma espécie de nostalgia dos padrões perdidos de normalidade – que psiquiatras e criminologistas queiram referir o episódio da Uniban à ação de psicopatas: maneira de devolver o mundo às categorias que, um dia, puderam descrevê-lo, mas que, possivelmente, já não servem mais.

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Penso que Geisy Arruda, mais do que outras mulheres, mais do que outras blondies, consegue encarnar o vazio exasperante que substituiu os códigos de moralidade e normalidade. Esse é, se quiserem, o seu enigmático talento. Esse, aliás, é o talento geral das celebridades contemporâneas. A celebridade, hoje, é uma espécie de nobreza que prescinde de virtudes excepcionais em algum sentido habitual da palavra. Ao contrário, os chamados “famosos” dão-nos a sensação de que estão lá simplesmente por terem sido escolhidos por Deus, sem ter que dar nada em troca. Tudo se passa como se expressassem uma celebridade pura, vinda do fato de que o Outro 0s ama mais do que a nós, e ponto final. Mas não é assim. Essas pessoas, como Geisy, têm, sim, um talento excepcional: esse que, insisto, consiste em encarnar, melhor do que nós, o vazio.

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