quinta-feira, 6 de maio de 2010

Qualquer coisa

“Escreva sobre qualquer coisa”, foi o que me responderam, depois de feita a temível pergunta “Sobre o que escrever?”. Tomo a resposta ao calcanhar da letra e aceito o desafio de escrever sobre “qualquer coisa”. Primeiro, é preciso suspender qualquer possibilidade metalingüística, pelo simples fato de que não há tal possibilidade. Deus talvez possa falar da língua dos homens, mas, nós mortais temos apenas uma linguagem. Falar metalinguisticamente é falar tautologicamente, i. e. dentro de um mesmo sistema, pois seriam necessárias novas referências para sustentar novos conceitos, e novos conceitos não dispensam a linguagem. Uma formalização não traduzida para uma linguagem ordinária continua a ser apenas uma série de símbolos autológicos: são signo e referência. “Qualquer coisa” é qualquer objeto, mas não é um objeto qualquer. Sua indefinição repousa justamente nos limites do que não pode ser definido, portanto seu limite é a definição. Mas não há termo a esta definição. Abandonamos nossa teoria? Absolutamente não; desde que o termo seja fim, feche uma totalidade. Assim, “qualquer coisa” continua a ser qualquer coisa. Mas, o que? Do que falamos até agora? “Qualquer coisa” é alguma coisa. Sim, mas como se pode falar de alguma coisa indefinida, ou antes, como se pode predicar indefinição de alguma coisa? A indefinição é a negação de uma definição, portanto de alguma coisa. Não pode ser isto ou aquilo outro, mas uma indefinição. Falamos do que não se conhece? Mas como se pode falar do que não se conhece? Se a linguagem permite que se cometa tal absurdo lógico, então existe outros interpostos pelos quais passa que não apenas signo e referência, já que se fala de algo pro qual não há referência. Ou, acaso pode-se apontar para "qualquer coisa"? Não, pois mesmo que se pudesse, ao apontar para "qualquer coisa", “qualquer coisa” deixa de ser o que é para ser qualquer coisa apontada. O ato de apontar dá um contorno para “qualquer coisa”. Há, no entanto, um uso de “qualquer coisa” que talvez possa lançar objeções ao que se disse: quando alguém diz, “Escolha alguma coisa”, “Mas o que?”, “Bem, qualquer coisa!” Nesse caso “qualquer coisa” se define por alguma coisa de um conjunto de coisas que estão em um lugar, e este é o máximo a que definição pode chegar. Há um termo para ela. Como se vê, este não é o caso. Se a linguagem permite falar de algo pro qual não há referência, então não faz sentido falar em termos metalingüísticos, pois ela, por si só, já ultrapassa o âmbito dos objetos; visto que a linguagem não é um simples apontar para eles, como queriam os gênios inventores do mundo de Gulliver, falar metalingüisticamente é fazer meta-metalinguagem; é objetificar algo que já é capaz de criar objetos, e que, por isso, possibilita que haja metalinguagem. Entretanto, do que fala a metalinguagem? Tudo se torna um imenso jogo de espelhos. Não se pode falar de um objeto objetivamente."Qualquer coisa" é um objeto da linguagem, mas não do mundo. Só podemos falar de “qualquer coisa”, porque não temos o mundo. E perco o desafio, se desde o início (não) falei de nada.

Um comentário:

  1. Isto posto, você está a um passo de se tornar derridiano. Sem ofensas.

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