segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Privilégio





Desisti de querer mudar-me para perto da universidade. Já não anseio voltar pra casa caminhando (ou quem sabe, pedalando) ao fim do dia ou me encontrar disponível para qualquer evento manifestado em última hora nos arredores da trindade. Dei-me conta de que me privaria da parte mais prazerosa da minha rotina de moradora distante, se assim o fizesse.
Apresento-vos meu privilégio.
Morar na parte continental da cidade (porque Florianópolis não é feita só de ilha – que isso já sirva ao leitor desavisado) tem suas vantagens. A minha é poder atravessar a ponte todos os dias e assim observar a rica paisagem transitória do adentrar a ilha, na ida, e do afastar-se dela, na volta. Junta-se a essa travessia todo o resto do trajeto que observo (agora já inserida na ilha) via beira mar ou baía sul para chegar à universidade. Por mais que eu trafegue, rotineiramente, pelos mesmos lugares, a visão que tenho através da janela hoje é sempre diferente da que tive ontem. É essa a riqueza da qual não abro mão. A vida que não descuido a mover-se lá fora me fascina. Se trago um livro para ocupar o tempo (o motorista que se encarregue do resto), divido meu olhar entre as linhas fixas e simétricas do papel e a paisagem corrente e improvisada da janela. Cada dia é singular. As nuvens se refletem no mar de maneira diferente, os passantes nas ruas não são sempre os mesmos, os outdoors se modificam, os moradores embaixo da ponte se revezam (simpatizei com o inquilino da vez, que entre seus pertences, conserva um robusto urso panda de pelúcia posto a olhar, incessantemente, a paisagem entre pontes), as pequenas moradas que contornam os morros parecem cada vez mais numerosas, os casais à beira mar brigam e fazem as pazes, as árvores no local mudam de humor com freqüência, o mar é vasto e sempre desconhecido, e uma centena de habitantes insulares que percebo a cada ida ignora meus olhares. Até o trânsito (cada vez mais caótico nessa ilhota) e os semáforos podem ser positivos se encarados nesse contexto: sobra-me mais tempo para a contemplação. Penso que não abdicaria tão fácil dessa minha excursão diária. Penso também que testemunhar toda essa multiplicidade, com seus feitos, enfeites e defeitos, e poder encontrar-me dentro dela, é atividade sublime que se faz necessária. Somo dias, muitos dias, percorrendo o mesmo trajeto – e não canso nunca.

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